Recentemente, uma fala dita em um programa de televisão causou perplexidade entre mães atípicas.
Um apresentador bastante conhecido afirmou que, se Deus aparecesse diante dele, não pediria a cura do filho autista, pois o ama exatamente como ele é.
A frase, de tom bonito e aparentemente acolhedor, gerou comoção, mas também dor e revolta entre famílias que vivem, na prática, os desafios intensos de criar uma criança com autismo sem estrutura, sem apoio e, muitas vezes, sem recursos para garantir o básico.
Amor não é romantizar a dor
O amor incondicional é o combustível que move as famílias atípicas. Mas quando se fala dele sem olhar para a realidade social, corre-se o risco de romantizar uma condição que exige cuidados complexos e permanentes.
Ter acesso a terapias, profissionais qualificados, escola inclusiva, transporte adequado e alimentação compatível com as necessidades da criança é um privilégio — e está longe de ser a realidade da maioria das famílias brasileiras.
Romantizar o autismo é ignorar o que acontece nas casas onde as mães precisam escolher entre comprar o remédio do filho ou pagar o aluguel, nas salas de aula onde faltam assistentes para acompanhar os alunos com deficiência, e nos consultórios onde o atendimento público é escasso ou inexistente.
Não se trata de falta de amor,  trata-se de falta de condições.
O olhar de quem vive de perto
Quem convive com uma pessoa dentro do espectro autista aprende que cada comportamento tem um motivo.
Eu mesma, como avó de um menino autista, já observei meu neto olhando “de lado”, o chamado olhar periférico, comum em algumas pessoas autistas.
Não é mania nem desinteresse. É uma forma de autorregulação, um modo de observar o mundo sem o excesso de estímulos que o contato visual direto provoca.
Mas o que para muitos é apenas curiosidade, para as famílias é motivo de estudo, dedicação e esperança, mas também de medo, insegurança…
Cada gesto, cada som, cada olhar é uma descoberta.
E quando uma criança autista que era não verbal finalmente pronuncia uma palavra,  ainda que seja apenas “farofa”,  isso representa uma conquista imensa, fruto de muito trabalho, terapias e persistência.
Nem todas as famílias chegam a viver esse momento. Muitas ainda esperam por uma vaga em tratamento, por um laudo, por uma chance.
A luta das famílias invisíveis
Por trás de cada criança com deficiência, há uma mãe exausta, um pai que tenta, avós que se reinventam e famílias que aprendem a sobreviver com pouco.
Há lares onde o alimento precisa ser adaptado por causa das restrições sensoriais, mas não há verba para comprar produtos específicos.
Há crianças que não frequentam a escola por falta de assistente, e outras que passam o dia isoladas por falta de compreensão social.
Essas famílias não pedem piedade.
Pedem políticas públicas efetivas, inclusão real, atendimento acessível e respeito.
Porque amar é natural. Mas cuidar, sem apoio e sem estrutura, é um ato de resistência diária.
Entre amor e superação
Amar uma criança autista é um aprendizado constante.
É compreender que pequenas vitórias,  uma nova palavra, um novo gesto, um sorriso inesperado,  são milagres do cotidiano.
Não se trata de pedir cura. Trata-se de pedir condições.
De pedir para que toda criança, independentemente de sua condição, tenha direito de se desenvolver, de ser compreendida e de viver com qualidade.
Porque o amor é imenso, sim.
Mas ele não deveria precisar ser heróico para existir.
Sobre a autora:

 Adriana Biazoli é jornalista, escritora, contadora de histórias e apaixonada pela arte de comunicar. Já atuou como radialista, apresentadora de TV e mestre de cerimônias, mas é entre crianças, festas e histórias que encontra sua verdadeira paixão. Com olhar sensível e escuta atenta, transforma encontros do cotidiano em narrativas que tocam o coração. Seu propósito é ensinar pessoas a se comunicar bem, com palavras, com presença e com afeto.
 📩 biazoliadriana@gmail.com
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