Um talento, uma potência estrondosa, que te atinge em uma velocidade difícil de registrar, então você busca a histórias e ela te atinge feito um sopro, suave, mas impossível de ignorar. Assim é Bianca Daruáh.
Uma jovem artista trans, dona de uma voz que não cabe em molduras, que ecoa como se carregasse dentro dela todas as memórias, dores e esperanças da periferia que a criou. Bianca não canta apenas: ela anuncia. E, ao anunciar, provoca um impacto imediato, desses que fazem o público perguntar, quase sem acreditar: Como essa artista ainda não é conhecida no Brasil inteiro?
Há talento, há potência, há verdade, mas há, sobretudo, uma força que se reconhece na primeira frase, no primeiro verso, no primeiro olhar. Como jornalista, é impossível não se deixar envolver por sua sensibilidade, sua lucidez e sua coragem de existir com inteireza num país que tantas vezes tenta silenciar corpos como o dela.
A seguir, você lê uma entrevista que não é apenas sobre música. É sobre fé, resistência, arte, território, afeto, feridas e futuros possíveis. É sobre uma mulher que transformou cada queda em repertório, e cada cicatriz em poema.

Infância e Origem
Como você descreve sua infância no Jardim Ângela? Quais lembranças mais marcantes você guarda desse período?
A minha infância foi muito ligada à minha família. Eu era uma criança muito afeminada na escola, na igreja e nos lugares que frequentava, e essa feminilidade sempre foi parte de mim. Havia um incômodo da sociedade ao meu redor, que queria que eu fosse uma criança mais padronizada, mais cisnormativa. Eu sempre fui disruptiva nesse sentido, mesmo criança. Os meus pais, na forma deles e com o que podiam, foram me abraçando com o tempo e tornando tudo mais fácil para mim. Apesar de ser mais difícil fora de casa, tive bastante acolhimento enquanto pessoa LGBT.
Crescer dentro da igreja moldou, de alguma forma, a Bianca que você é hoje? Como era sua relação com os corais e ensaios?
A construção musical que eu tenho hoje vem da igreja. Ter crescido nesse ambiente e aprendido música lá foi extremamente benéfico e significativo. Apesar dos pesares, guardo memórias incríveis e maravilhosas desse lugar, que em determinado momento não serviu mais para mim, mas que moldou o meu caráter, a minha musicalidade e influencia até hoje a minha arte.
Quando você percebeu que a música era mais do que um hobby — era parte da sua existência?
Eu tentei fugir disso e ter um trabalho trivial. Mas a arte e a música sempre pulsam, porque o artista é um completo insatisfeito com a realidade. Em determinado momento da minha vida, eu estava tão insatisfeita que percebi: o único lugar possível para mim era a música. Foi quase obrigatório. Não foi uma escolha, mas uma necessidade real, intensa, pulsante e que faz parte de mim.
Adolescência e Descobertas
Como foi atravessar a adolescência sendo uma jovem trans/travesti em um território periférico?
Foi bem complicado e difícil. As periferias não recebem tanta informação, principalmente sobre diversidade, inclusão, gênero e sexualidade. Quando existe uma criança com um gênero disruptivo, o convívio se torna muito difícil. Essa criança passa por um processo de bullying intenso, que deixa marcas. A minha escapatória foi fazer seis anos de terapia na fase adulta, o que me ajudou a ressignificar muitos traumas. Mas a periferia também me deu muita cultura, considero que uma das minhas raízes é a periferia.
Houve algum episódio marcante — positivo ou negativo — que impactou sua identidade e autoestima nessa época?
Sim, vários. Um muito significativo foi a primeira vez que cantei para um público. A música era Fale com Jesus, da Shirley Carvalhaes. A minha prima Priscila me colocou para cantar num púlpito. Eu tinha uns 6 anos. Lembro de subir, fechar os olhos e soltar a voz para a minha primeira plateia. Foi marcante demais.
Em que momento você começou a identificar sua sensibilidade artística como uma ferramenta de resistência?
Quando comecei a compor. Sempre tive dificuldade em escrever sobre romance, porque para uma travesti esse é um espaço muito dolorido. Então, o que vinha nas minhas composições eram minhas dores, minha vida, minhas existências. Na música Arsenal, falo sobre o que vivi na igreja, sobre pegar ônibus e andar na rua enquanto um corpo travesti. Ter a música como forma de dizer quem eu sou é maravilhoso. É onde encontro sensibilidade e coragem para colocar na caneta o que está no meu coração.
Lutas, Preconceitos e Enfrentamentos
Quais foram os principais preconceitos e barreiras que você enfrentou ao longo do caminho?
Ser uma travesti cantora no Brasil é enfrentar muita dificuldade para ser validada. Festivais e produtoras são dominados por homens heterocis. Entrar nesses espaços é muito difícil para corpos dissidentes. Não é impossível, mas parece que precisamos entregar muito mais. E isso cansa.
Como você lidou emocionalmente com esses episódios? Existiu alguma fé, arte ou rede de apoio que te segurou?
A minha mãe é uma rede de apoio muito importante. Quando o mundo diz “não”, ter uma mãe que acredita e ama a minha voz faz toda a diferença. Pessoas LGBT muitas vezes não têm compreensão em casa, eu tive o privilégio de ser entendida, abraçada e honrada pelos meus pais. Isso é um refúgio indescritível.
Você recebeu apoio da família, amigos ou comunidade? Ou trilhou o caminho mais sozinha?
As duas coisas. Recebi apoio dos meus familiares, amigos e pares, mas ainda assim, a caminhada é solitária.
A Voz, a Arte e o Chamado
Você diz que a voz foi seu primeiro abrigo e sua primeira forma de luta. O que isso significa para você?
Significa que eu quero transformar isso em larga escala. Desejo que esse “rio que me atravessa” não só me atravesse, mas toque outras Biancas e outras pessoas que se identifiquem com minha música e minha arte.
Quando percebeu que tinha talento especial para cantar?
Cantando coisas da minha infância, Racionais, RBD. Lembro das primeiras vezes cantando em playback e minha mãe dizendo: “Nossa, como você canta bem!”. Depois, a igreja me deu muitas oportunidades. A validação externa também foi importante.
Você chegou a fazer aulas ou tudo nasceu da vivência?
As duas coisas. Aprendi tudo na vivência e na necessidade. Por causa dessa necessidade, procurei corais e espaços na igreja, sempre pedindo oportunidade para cantar.
Primeiras Apresentações e Início da Carreira
Qual foi sua primeira apresentação pública?
Foi na igreja, com a minha prima. Eu fechei os olhos e só senti o momento. Eu tinha 6 anos, e cantei Fale com Jesus.
Como foi participar das audições do The Voice Brasil 2023?
Foi um processo longo e cansativo. Não consegui cantar ao vivo porque cheguei na última leva, quando o programa já estava no ar. Mas foi maravilhoso conhecer outros artistas. A experiência moldou meu caráter e a maturidade da minha voz, e reforçou que é isso que quero para a minha vida.
Quando decidiu seguir carreira de forma independente?
Foi algo imposto pelo universo: “é isso ou isso”. Eu sou uma artista, e isso pulsa. Os desafios são muitos, investimento, oportunidades, mas faz sentido para mim, apesar das dores.

Linguagens Musicais e Identidade Artística
Você foi a primeira travesti a lançar um funk consciente paulista. Como nasceu “Melodia do Impossível”?
Nasceu das minhas escolhas musicais. Eu escuto muito MC Hariel e outros artistas do funk consciente. Encontrei no funk uma forma de expressar esperança, não apenas dor. No refrão, falo de fé e da minha trajetória como um corpo trans.
O que significa misturar espiritualidade, rua, dor, fé e sensualidade na sua música?
Significa poder. Muito além do que foi imposto ao meu corpo. Enquanto a sociedade pensa as esquinas para uma travesti, eu penso fé, música, dor, sensualidade e possibilidade.
Você já passou por funk, trap e agora vive o dancehall. Essas mudanças refletem suas fases de vida?
Totalmente. O encontro com o Dancehall foi surreal, é uma cultura inclusiva para corpos trans. Ele traz paz, amor e a possibilidade de existir à minha maneira.

Em qual desses gêneros sua alma se expressa com mais liberdade hoje?
Hoje consumo muito Dancehall, funk, pop e R&B. Neles consigo falar do meu corpo de forma livre, sensual, e não apenas sobre dor, mas sobre beleza.
Representatividade, Território e Legado
Sua arte carrega quebrada, resistência e corpos marginalizados. O que você deseja que as pessoas sintam ao te escutar?
Desejo que tenham uma experiência quase mística, ligada à fé. Que sejam encorajadas, que vejam beleza nos próprios corpos, mesmo quando a sociedade diz o contrário. Que encontrem esperança.
Você se sente um símbolo de esperança para outras jovens trans da periferia?
Sim. E quero ser cada vez mais. Sinto que, com minha trajetória, tenho uma maturidade espiritual e emocional que o tempo e as dores me deram.
Que mensagem você deixa para quem tenta transformar dor em arte?
Que não desistam dos seus sonhos. Que pensem nos seus corpos como inteiros e dignos, não faltantes e não devendo nada à matriz heteronormativa.
Futuro
O que você sonha construir daqui para frente?
Sonho em cantar no Lollapalooza, no Rock in Rio, em eventos grandes. Sei que vou estar nesses lugares porque a minha voz e a Ruá vão soprar o meu corpo.
Quais projetos e passos você visualiza para os próximos anos?
Quero cantar em eventos, lançar EPs, videoclipes e muitas coisas que serão conhecidas em breve.
Se pudesse conversar com a Bianca criança ou adolescente, o que diria?
Que ela não fazia ideia de que viveria hoje como artista, mas, no fundo, sabia. Ela só não imaginava que tinha tanta força e que transformaria dores em beleza.

Instagram: @biadaruah – @nossaoeste
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Jornalista: Adriana Biazoli
Redação Nossa Oeste – Jornalismo com propóisito

