Três pares por dez… e um sonho de brinde

Acontece Coluna
Adriana Biazoli

Essas belezinhas são nossas queridinhas. Aquecem os pés, têm gente que adora andar de meia pela casa, e, no inverno, são mais que bem-vindas. Com tênis, botas, sapato social… elas têm um lugar especial na gaveta — e se perdem que é uma beleza!

Segundo Marcelo Duarte, em seu Livro das Invenções (Cia. das Letras), as primeiras meias foram utilizadas por mulheres gregas por volta de 600 a.C. As sykhos, como eram chamadas, pareciam um sapato baixo, como uma sandália, cobrindo os dedos e o calcanhar.

 

Nosso texto tem tudo a ver com elas: as meias. tempos atraz, ouvi uma voz aguda oferecendo essas belezinhas. A voz parecia de uma criança — peculiar, marcante — e dizia alto:
“Olha a meia femininaaaaaaaaa! A meia masculinaaaaaaaaaaaa! Três pares de meia é dezzzzzzzzz!”

Ela percorre o bairro inteiro, sobe e desce ladeiras com mochila, sacola, às vezes até um saco. Mesmo depois de ter passado em frente à nossa casa, algum tempo depois ainda é possível ouvi-la ao longe, claramente.

Muito comovida com o esforço dessa jovem, finalmente comprei o produto. Fui logo puxando papo. Ela, confortável e vendo que eu era amistosa, pediu água. Servi com prazer. Comecei a fazer perguntas — instinto jornalístico, só pode ser. Sentamo-nos ali, no meio-fio, e conversamos um cadinho.

Ela é adolescente — vamos chamá-la de Karina — bonita, alta, com um leve sotaque nordestino (influência dos familiares). Perguntei como tudo começou, e ela, sorridente, narrou sem constrangimento:

“Olha, moça, a coisa foi complicando com a pandemia. Meu pai trabalhava com registro, terminou o contrato e ele saiu. Aí ele começou a vender com minha madrasta. Eu não vendia, ficava em casa, entediada, sem aula. Até que umas primas minhas vieram do Rio de Janeiro pra morar perto da gente. Então eu vi minhas primas ganhando dinheiro com as vendas e também quis ganhar um dinheirinho. Fiquei pedindo pro meu pai. No começo ele não queria… levei três semanas pra convencer ele. Aí ele acabou concordando.”

Finalizou rindo.

É comovente. O marketing dessa garota é o timbre da sua voz. A gente quer ver quem é. Procura. Mas não dá pra imaginar quem é a dona daquela voz. A garota, de chinelinho de dedo, confessa:
“Não gosto de sapato fechado, tênis me incomoda muito.”

Pergunto:
— Não ficou com vergonha?

Ela responde:
— No começo, sim. Mas logo passou.

E confessa:
— Gosto quando venho com mais alguém. O tempo passa e a gente ri. O tempo passa e as vendas acontecem.

— Onde mora?, pergunto.

— Em Santana de Parnaíba.

— E por que não trabalha no município onde mora?

— A gente trabalha lá sim, nos sábados e domingos. Durante a semana, a gente faz Jandira, Carapicuíba, Barueri e Itapevi.

Eu sei que algumas pessoas vão dizer: “Mas criança não pode trabalhar.” Realmente, o leitor tem toda razão. Mas o poder público consegue suprir o tempo ocioso desses jovens? Para impedi-los de trabalhar, temos que atraí-los com outras atividades. Como ela mesma afirmou, o pai não queria — ela venceu pelo cansaço.

Vi uma menina feliz. Talvez estivesse ainda mais feliz se estivesse tendo aulas de teatro, dançando, fazendo essas coisas… e tendo a despensa e a geladeira fartas, recursos para pegar condução até o local das aulas, e possibilidades de comprar os acessórios necessários para participar dos cursos.

Mas vi, sim, uma jovem feliz em contribuir. Feliz por poder comprar o que precisa com o próprio dinheiro. Feliz em conversar com as pessoas, vendendo seus itens. Ela está formulando seus sonhos. Diz que ainda não sabe bem quais são, mas que gosta de gente, de conversar. Sugiro:

— Você pode trabalhar com comunicação, ser jornalista. Mas pra isso tem que estudar. Não pode parar de estudar. Você pode ser o que quiser — tem que se esforçar e acreditar que pode.

Se ouvir uma voz peculiar vendendo meias, reserve uns trocados para comprar os pares dessa jovem. Tenho certeza de que seu gesto vai valer muito mais que apenas meias.


Sobre a autora:

Adriana Biazoli é jornalista, escritora, contadora de histórias e apaixonada pela arte de comunicar. Já atuou como radialista, apresentadora de TV e mestra de cerimônias, mas é entre crianças, festas e histórias que encontra sua verdadeira paixão. Com olhar sensível e escuta atenta, transforma encontros do cotidiano em narrativas que tocam o coração. Seu propósito é ensinar pessoas a se comunicar bem — com palavras, com presença e com afeto.

Instagram: adrianabiazoli

Email:biazoliadriana@gmail.com

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